18 dezembro, 2007

Perspectivas atuais do ensino de filosofia

(artigo publicado na revista "Rascunho" da Cooperativa de Estudantes de Santa Maria - Cesma - março de 2007)


por Andrei Cerentine

A retomada das discussões a respeito da inclusão da filosofia nos currículos no Ensino Médio brasileiro, bem como sua inclusão em processos seletivos de algumas universidades, têm suscitado inúmeros pontos que merecem atenção. Dentre os pontos conhecidos estão desde a falta de qualificação específica de professores (aqueles que lecionam sem a formação acadêmica), critérios para a formulação de currículos, ínfima carga horária, desinteresse geral por parte de alunos e professores das demais disciplinas, etc. Não se pode pretender elucidar todos estes pontos de uma vez só, o que me leva a uma pequena reflexão a respeito de como os professores compreendem sua própria prática de ensino de filosofia.
Uma pergunta com a qual se poderia iniciar uma reflexão é: “o que estamos fazendo ao ‘ensinar filosofia’?” Para responder a isso, precisamos observar os fatos, ou seja, como as aulas de filosofia têm sido ministradas nas escolas (e isto inclui uma pesquisa a respeito dos materiais didáticos utilizados, metodologias), qual o tipo de preparo dos professores e, talvez o mais importante, o que eles pretendem enquanto professores de filosofia. Uma pesquisa iniciada pelo FILJEN no ano de 2005, da qual comecei a fazer parte no ano passado, mostra alguns dados relevantes para uma possível resposta.
Um dos jargões mais ouvidos nas discussões é o seguinte: a filosofia forma cidadãos mais críticos. E como ela faz isso? “Ensinando a pensar”, diz o outro jargão. E como se faz isso? “Dialogando”. Respostas vazias. Do modo como se sabe que as coisas são feitas (o ensino historicamente pautado, a superficialidade das discussões propostas em aula, quando não o total abandono do exercício filosófico), parece impossível desenvolver “senso crítico” ou coisa que o valha: como se pode pretender que o jovem seja crítico se mal compreende os textos que lêem? Não acredito que a tarefa do professor de filosofia seja ensinar os alunos a ler ou escrever. Mas é inegável que quando os introduzimos num outro universo de pensamento, pautado pela coerência argumentativa, pela necessidade de leituras e reflexões adicionais, como da filosofia, a possibilidade de modificação nas práticas de interpretação de escrita aumentam significativamente.
Tendo em vista o atual estado de coisas, pode-se inferir que a pergunta que deu origem a esta reflexão, com algumas exceções, não figura como fundamento das práticas vigentes em sala de aula. A importância deste questionamento me parece crucial na medida em que a compreendo como um primeiro passo na tentativa de construir uma metodologia de ensino de filosofia que possa dar conta das diversas concepções da mesma sem perder de vista um objetivo específico: a atividade de esclarecer idéias, analisar conceitos e argumentos de modo criterioso. Esforços no sentido de buscar estabelecer uma tal metodologia são preciosos dada a crescente necessidade de formar professores qualificados, aptos ao desenvolvimento de uma prática didática que conserve as peculiaridades da filosofia sem que ela seja completamente desinteressante ao universo dos jovens estudantes. Dentre estas peculiaridades encontra-se um aspecto premente nas questões de filosofia apresentadas no vestibular 2007 da UFSM: a transversalidade.
Os conceitos analisados pela filosofia não são exclusividade sua, basta notar que conceitos como verdade, significado, crença, teoria, para dar alguns exemplos, são fundamentais para qualquer área de conhecimento e ação; sendo assim, fazem parte do discurso das outras disciplinas do currículo. É através da reflexão sobre eles que podemos exercer a transversalidade, entendendo por isso a análise articulada de idéias que são compartilhadas por todas as disciplinas. No vestibular da UFSM desse ano, algumas questões partiram de conceitos comuns, dando margem para a percepção do modo como as disciplinas se relacionam umas com as outras. Exemplos disso foram as questões de filosofia que envolviam conceitos fundamentais das ciências naturais, da matemática, e mesmo aquelas conectadas com questões de língua portuguesa e literatura. Diversos alunos, e mesmo professores que realizavam a prova simultaneamente, respondiam questões sem ter idéia de qual “matéria” se tratava. Considero este último fato importante na avaliação da inclusão da filosofia no vestibular da UFSM, tendo em mente principalmente as críticas à fragmentação dos saberes, sua falta de conexão, que acaba facilitando um modo de estudar pautado pela mera memorização de conteúdos sem articulação alguma entre si.
O aspecto transversal da filosofia não precisa ser encarado como uma proposta metodológica inovadora, ou como a solução para os problemas citados acima, na medida em que ela está vinculada ao próprio labor filosófico. Com isso, o fato de a UFSM ter produzido questões de filosofia que não se pautaram pela abordagem histórica, geralmente infrutífera em termos de aprendizagem do exercício filosófico – principalmente quando só se ensina história da filosofia – apenas contempla uma característica intrínseca da filosofia, não sendo uma invenção metodológica. O que por vezes assusta é a constatação de que, em geral, o professor que está dando aula no Ensino Médio não consegue perceber o alcance da transversalidade para o debate com as outras áreas do currículo, muito embora seja também percebido um discurso que defende a filosofia como detentora do fundamento último de todas as ciências. Há uma diferença enorme entre a percepção de que os conceitos com os quais a filosofia opera sejam, em grande medida, fundamentais para as ciências (humanas ou naturais), as letras e a matemática, e a afirmação de quem sem uma fundamentação filosófica, as demais áreas do conhecimento ou da ação humanas perderiam sentido – o que denota uma certa megalomania filosófica por parte de alguns professores.
A articulação de conteúdos das diferentes disciplinas pode tornar-se frutífera em termos de aprendizagem filosófica na medida que o professor se aproxima das outras áreas do saber. Isto significa que o professor de filosofia precisa se apropriar minimamente das ferramentas conceituais das demais disciplinas de modo a poder realizar uma caminhada nas pontes entre elas. Esta articulação seria um passo interessante na construção de uma metodologia adequada às características intrínsecas ao pensamento filosófico, e mesmo no sentido de uma nova perspectiva para o ensino em geral. Na medida em que os colegas das demais disciplinas se envolvem um pouco com nossos temas e modos de abordá-los, os alunos (na verdade, todos os envolvidos no processo formacional) só têm a ganhar, dado que a compartimentalização de saberes, naquilo que ela traz de confuso) poderia começar a se desfazer. Isso tudo pressuporia, certamente, uma dedicação diferenciada por parte dos professores, o que talvez só fosse possível depois de um auto-exame, quem sabe depois que todos se perguntassem “o que estamos fazendo ao ‘ensinar?” Afinal de contas, porque nos tornamos professores? Temos alguma coisa em comum?

“Todo nível um pouco elevado da produção supõe uma cooperação mais ou menos ampla; e a cooperação se define pelo fato de que os esforços de cada um não têm sentido e eficácia senão por sua relação e sua exata correspondência com os esforços de todos os outros, de maneira que todos os esforços formem um só trabalho coletivo.”
(Simone Weil, em Opressão e Liberdade.)

Nenhum comentário: